Quem é o dono do som: instrumento ou intérprete?

Por Parceria Jurídica

15 de agosto de 2025

Quando ouvimos uma música, raramente paramos pra pensar em quem realmente “possui” aquele som. Será que ele pertence a quem tocou? Ao compositor? Ao dono do instrumento? Ou ao produtor que gravou tudo? A resposta não é tão simples quanto parece. E quando entramos no universo jurídico, essa dúvida vira um verdadeiro labirinto de interpretações e contratos.

No mundo da música, cada camada do som tem um tipo diferente de proteção legal. Existem os direitos autorais do compositor, os direitos conexos do intérprete e até os direitos do fonograma, ligados à gravação em si. Mas o que acontece quando alguém grava uma execução ao vivo, por exemplo? Ou quando um músico de apoio cria um solo improvisado que acaba virando parte marcante de uma música?

Além disso, com a popularização dos instrumentos digitais e da tecnologia de produção musical, essa discussão ficou ainda mais complexa. Afinal, hoje em dia um som pode ser programado, sintetizado, gerado por um algoritmo ou tocado por um robô. Onde fica o “dono” nesse cenário todo? Quem tem o direito de explorar comercialmente aquilo que foi tocado?

Pra entender melhor essa questão, vamos explorar diferentes situações envolvendo instrumentos musicais específicos. Em cada caso, há nuances legais que ajudam a revelar quem tem o domínio sobre o som. Instrumento ou intérprete? Ou talvez os dois? Vamos ver.

 

Execução em instrumentos de sopro: direito ou interpretação?

Os músicos que tocam instrumentos de sopro geralmente desenvolvem um estilo muito particular. A maneira como cada um articula, respira, acentua e colore as notas cria uma identidade única. E é aí que mora a pergunta: esse estilo é uma criação protegida por lei ou apenas uma forma de execução que pertence à obra original?

Do ponto de vista jurídico, se o músico estiver apenas executando uma partitura fiel ao que está escrito, sem adicionar elementos criativos próprios, ele não é considerado autor, mas sim intérprete. No entanto, se ele improvisa, muda a estrutura melódica ou adiciona passagens novas, a situação muda. Essa contribuição pode gerar direito conexo — ou seja, um tipo de direito que reconhece a participação criativa de quem interpreta a obra.

Agora, pense num solo improvisado com um instrumento de sopro, gravado em estúdio e usado numa música lançada comercialmente. A quem pertence esse solo? Se não houver um contrato especificando, pode haver disputa. Muitos músicos não recebem crédito ou participação por essas criações, o que levanta uma discussão ética além da legal.

Ou seja: o som é do instrumento, da técnica do músico e da liberdade de expressão. Mas o direito sobre esse som precisa estar bem amarrado em contrato, senão pode virar dor de cabeça no futuro.

 

Percussão e propriedade rítmica: o que é original?

Ritmo é criação? Pode parecer uma pergunta besta, mas ela é fundamental quando o assunto é direitos autorais. No caso da bateria instrumento musical, isso fica ainda mais evidente. Um groove marcante pode ser o coração de uma música — pense em “Billie Jean”, por exemplo — mas será que o baterista que criou aquele padrão tem direito sobre ele?

Legalmente, ritmos simples ou padrões comuns não são protegidos por direito autoral. Mas quando a execução rítmica traz um nível de originalidade e criação estética, o intérprete pode ser reconhecido com direitos conexos. Isso significa que, mesmo sem ter escrito a música, ele tem participação legal na gravação daquela obra específica.

A linha é tênue. Muitos bateristas que criaram grooves históricos acabaram fora dos créditos e dos royalties simplesmente por não terem formalizado sua contribuição criativa. O problema se agrava quando esses padrões viram sample e passam a ser usados em outras músicas sem reconhecimento algum.

A lição aqui é clara: se a batida é sua, proteja. Registrar sua contribuição ou assinar contratos detalhados ajuda a garantir que seu trabalho não seja apenas ouvido, mas também valorizado.

 

Guitarra e solos memoráveis: quem detém o direito?

Agora entramos num terreno ainda mais polêmico: solos de guitarra. Quantas músicas ficaram eternizadas por causa de um solo marcante? E quantos desses solos foram criados no improviso, no estúdio, por músicos convidados, sem nenhuma cláusula contratual protegendo sua autoria?

Do ponto de vista técnico, um solo pode ser considerado obra derivada ou mesmo coautoria, dependendo do grau de originalidade e da relevância dentro da música. Mas na prática, isso só tem valor jurídico se estiver documentado. Sem isso, o guitarrista pode acabar sem direito algum, mesmo tendo criado algo inesquecível.

E mais: com a prática comum de ghost musicians (músicos que gravam sem serem creditados), muitos solos icônicos nem foram tocados pelos integrantes da banda. Quem gravou recebeu um cachê e sumiu do mapa. Esse modelo de trabalho ignora completamente a dimensão autoral da performance — o som vira um produto anônimo.

A partir do momento em que o solo vira parte essencial da composição e da identidade da música, é justo (e legalmente possível) que o criador receba reconhecimento e participação. Mas isso só acontece se houver diálogo e contrato. O som pode sair da alma… mas precisa estar no papel também.

 

Violinos, partituras e liberdade criativa

Em contextos de música erudita, como o universo do violino, a relação entre som, intérprete e autoria é ainda mais complexa. Afinal, muitos músicos seguem rigorosamente a partitura. Mas mesmo nessa rigidez formal, há espaço para interpretação — e é aí que os direitos entram em cena.

A maneira como o músico fraseia, aplica vibrato, controla a dinâmica… tudo isso é pessoal, subjetivo e criativo. Mas será que essa expressividade garante algum direito autoral? Tecnicamente, não. Porém, garante sim o direito conexo, que protege a performance registrada em uma gravação específica.

Ou seja: mesmo que o violinista não tenha composto a peça, ele tem direito sobre sua execução gravada. Isso é importante em contextos como trilhas sonoras, álbuns de música clássica e transmissões ao vivo. Ninguém pode usar essa gravação sem permissão — o som pode não ser “original”, mas a interpretação é.

A questão fica mais interessante quando há variações ou improvisos dentro da execução. Isso acontece bastante em música contemporânea ou experimental. Aí, sim, podemos ter situações onde o intérprete se torna coautor, dependendo do quanto ele alterou ou acrescentou à obra original. O som do violino, então, vira uma nova criação — com dono, sim senhor.

 

Samples, loops e autoria digital

Com os Equipamentos para Dj, a discussão sobre a propriedade do som atinge outro patamar. Aqui, não se trata apenas de tocar, mas de manipular, recortar, remixar e reconstruir. DJs e produtores trabalham com sons alheios o tempo todo. E a pergunta volta: quem é o dono desse som remixado?

No Brasil e em boa parte do mundo, samples precisam ser autorizados. Se um DJ usa um trecho de uma gravação protegida sem permissão, mesmo que por segundos, pode estar infringindo direitos autorais. E isso vale tanto pra uso comercial quanto pra distribuição gratuita. O som original tem dono — e o remix, só é legal se esse dono permitir.

Mas e se o DJ cria tudo do zero, usando instrumentos virtuais, loops gravados por ele mesmo e manipulações digitais? Aí, sim, temos um cenário de criação autoral legítima. O problema é que muitos desses sons são criados com presets de softwares que já têm direitos específicos. Parece confuso, e é mesmo. Cada camada de som pode ter um dono diferente.

Na prática, quem usa equipamentos de DJ precisa entender que cada som é um contrato em potencial. Se não estiver bem claro o que é seu e o que é de terceiros, você pode acabar respondendo legalmente. Música eletrônica é liberdade criativa, mas o jurídico também toca junto — só que no tom das leis.

 

O contrato como partitura legal do som

No fim das contas, o que define de quem é o som não é só o instrumento, nem só o intérprete — é o contrato. Se você gravou algo, improvisou, criou um solo ou compôs uma linha melódica marcante, tudo isso pode ter valor jurídico. Mas sem um contrato especificando sua autoria ou participação, sua contribuição pode desaparecer da história (e dos royalties).

É comum músicos tocarem em sessões de estúdio sem ter ideia de que sua performance vai parar em um disco de sucesso. Ou pior: nem saberem que a gravação foi registrada oficialmente. Por isso, é fundamental formalizar qualquer participação. Mesmo algo aparentemente “simples”, como uma gravação de ensaio, pode virar um fonograma com valor comercial.

Para produtores, artistas independentes e músicos de apoio, o ideal é sempre trabalhar com contratos que deixem claro quem fez o quê. Quem é autor, quem é intérprete, quem é coautor. Isso evita problemas futuros e garante que o som não tenha apenas valor artístico, mas também reconhecimento legal.

E não custa lembrar: na música, o silêncio jurídico pode sair mais caro do que qualquer nota errada. Melhor se proteger do que ficar tocando o mesmo refrão na justiça por anos. Literalmente.

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